Desde a desencarnação de Chico Xavier, tenciono escrever algumas linhas sobre ele, sua vida, sua obra. Em verdade, esse desejo é maior do que comporta o espaço de uma crônica e, por certo, se transformará em um trabalho um pouco maior. Entretanto, considerando-se que hoje, 30 de junho de 2012, completam-se 10 (dez) anos do seu retorno à pátria espiritual – se é que ele se encontrava distante de lá –, animei-me para fazer, dentre as muitas que têm ocupado minha mente, uma reflexão, em especial: por que transformamos Francisco Cândido Xavier numa espécie de santo?
Antes de indicar algumas razões, convém identificar fatos e comportamentos que nos revelem essas atitudes, por assim dizer, santificadoras da figura do médium mineiro. Além disso, recomendo ao leitor que, ainda que algumas palavras o incomodem e inquietem, não se furte a acompanhar o texto até o final, para que possa melhor se certificar das minhas intenções ao traçar estas linhas.
Em primeiro lugar, desde a década de 1970 e a aparição de Chico no programa “Pinga-fogo”, Uberaba se transformou em uma espécie de Meca para os espíritas, parada obrigatória, local sagrado de visitação. Não se concebia que alguém, sendo espírita, nunca tivesse visitado a cidade para se avistar com o médium, aquele médium tão conhecido e que foi veículo de tantos espíritos distintos e reconhecidamente operosos. Lá, filas imensas eram formadas por pessoas que desejavam beijar-lhe as mãos ou, simplesmente, chorar diante deles, a fazerem seus mil pedidos e orações, na esperança de obterem graças tão desejadas. Como classificar tais comportamentos?
Nessa esteira, transformamos as palavras de Chico Xavier, ou dos espíritos por seu intermédio, em verdades absolutas, incontestes, não passíveis de discussão. Esquecemos que cada médium e cada espírito trazem suas opiniões, como alerta Kardec, e nos deixamos seduzir por qualquer noticiário que nos chegue, desde que justificados pela assinatura de Chico ou dos espíritos que o acompanharam. Como classificar tal postura?
Falamos de sua vida, repetimos fatos de sua história, de suas dificuldades, como se falássemos de um ser sagrado e que o foi, sobretudo, em virtude da capacidade “extraordinária” de contato com os espíritos. Exaltamos sua mediunidade e os fenômenos produzidos, como se o tivessem sido por ele mesmo, Chico, esquecidos de que os livros e os fenômenos foram provocados pelos espíritos (médium significa intermediário, afirma Allan Kardec), estes sim, seus verdadeiros autores e que devem, com justiça, merecer os louros pelo que fizeram. Como classificar tal distanciamento doutrinário?
Após sua desencarnação, Pedro Leopoldo e Uberaba se transformaram, para muitos, lugares sagrados. Peregrinações para conhecer o lugar onde viveu aquele grande ser, para orar diante do seu túmulo e de sua estátua (???). Aliás, tal estátua virou até lenda, afirmando-se que produz uma água milagrosa que cura males e enfermidade, que já é até engarrafada por pessoas que lá vão e se colocam, vivamente emocionadas, a exortar e a prantear suas agruras diante da imagem do ser venerado. Como classificar tal distorção?
Homenagens se multiplicam mundo afora, em verdadeira demonstração de que temos confundido a pessoa com seu trabalho, desconhecendo o papel secundário que os médiuns desempenham na tarefa mediúnica.
E outros tantos exemplos poderíamos dar, deste processo de santificação de Chico Xavier.
Tudo isso temos feito por nossa lamentável ignorância sobre os seguintes aspectos:
- mediunidade não é privilégio de pessoas especiais, por não se tratar de um dom sobrenatural, e sim faculdade natural, que todos possuímos, embora em graus e intensidade diferentes;
- médiuns não são deuses, e sim pessoas normais, comuns, “filhas de Deus, nessa canoa furada” em que nos encontramos. São pessoas que vivem e respiram como todos os demais e que não estão livres dos dissabores da vida;
- temos uma herança atávica terrível, que ainda nos dita a necessidade de criarmos os nossos cultos externos e “inventarmos” pessoas para idolatrar. Seja pela educação recebida, seja pelas marcas ainda muito vivas das experiências religiosas de outras encarnações, ainda precisamos, no fundo d’alma, criar mitos para venerar, o que em nada se coaduna com a proposta libertadora e renovadora que o Espiritismo traz.
É preciso lembrar que Chico também foi – e continua sendo – gente! Privou de muitas dificuldades íntimas, lidou com os males físicos que, para ele, se fizeram irremediáveis, se viu envolvido em problemas de toda ordem, possuía limitações diversas, o que faz concluir que não estava entre nós por acaso – também ele possuía suas questões a resolver.
Não era uma alma perfeita, evoluída, mas que soube aproveitar algumas oportunidades para trabalhar, em si, virtudes como paciência, resignação, devotamento e humildade, e mais por isso, do que propriamente pelos fenômenos mediúnicos, é que deve ser lembrado e respeitado em sua tarefa.
Estejamos bem atentos no que fazemos, quando levamos adiante esse clima santificador em torno de Chico Xavier. Reconhecê-lo humano, de carne e osso, com suas limitações e conflitos, o torna muito maior do que esse santo que tanto pintamos. É muito mais encorajador reconhecer a verdade e nos sentirmos verdadeiramente confiantes para arrostar as tempestades de nossas vidas, por termos, como exemplo, um igual, do que fantasiar e imaginar poderes sobre-humanos inexistentes, distanciando-o da nossa realidade e imaginando inalcançável a sua superação.
Com isso, não estamos desconsiderando o grande valor pessoal e doutrinário de Chico Xavier. Sua contribuição mediúnica foi fundamental para redefinir os rumos do Movimento Espírita e da própria Doutrina, bem como seus exemplos são sobremodo reveladores do avanço moral que conseguiu consolidar na presente encarnação.
Contudo, seja como médium, seja como pessoa, Chico não necessita de homenagens e de idolatria! Encarnado, sempre fugiu desses confetes e dessas deturpações. Por que o forçarmos a recebê-las agora, quando, na condição de espírito, necessita de tranquilidade para cuidar de seus interesses?
Farei minhas as palavras seguras e firmes de outra médium notável, Yvonne do Amaral Pereira, que tinha e sabia o que dizer:
"O médium não tem que receber privilégios, nem elogios, nem homenagens especiais. Esse erro tem entravado, prejudicado e até destruído o progresso de muitos médiuns. O médium é um ser no Bem como outro qualquer, e, como intermediário entre o Invisível e a Terra, está cumprindo o seu dever como os demais adeptos cumprem o deles. Precisa, sim, é de caridade... e orações que lhe deem forças para o mandato que deverá desempenhar. Lembremos de que o próprio Mestre disse aos seus apóstolos: 'Assim também vós, depois de haverdes feito quanto vos foi ordenado, dizei: Somos servos inúteis porque fizemos apenas o que devíamos fazer' (Lucas, 17:3 a 10)". (Do livro Pelos caminhos da mediunidade serena)
Dissemos e repetimos: nem Chico é um santo, nem nós necessitamos desse culto externo para reconhecer o seu valor. Se quisermos verdadeiramente homenageia-lo e reconhecer sua importância, adotemos dois comportamentos: estudemos longamente os livros que produziu, buscando divulgá-los e esclarecê-los para toda gente (aquela caridade para com a Doutrina de que nos falou Emmanuel), e sigamos seus exemplos de renúncia, humildade e devotamento ao Bem.
Aí, sim, estaremos cumprindo – e bem cumprindo – o nosso papel!
Salvador, 30 de junho de 2012.
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